9.22.2010

À Mathilde Gasnier, casadinha de fresco - longa vida e prole abundante! - este primeiro conto dos Contos de Odessa de Issak Bábel, por mim traduzido penosamente.

O REI
Terminada a cerimónia do casamento, o rabino deixou-se cair na cadeira, depois saiu e viu as mesas dispostas por todo o pátio. Havia tantas que o seu alinhamento passava para lá das grades, para a Rua Gospitálnaia. As mesas cobertas de veludo serpenteavam pelo pátio como cobras que tivessem sido remendadas nas barrigas com bocados de todas as cores, e esses remendos de veludo cor-de-laranja e vermelho cantavam numa voz densa.
Tinham transformado as divisões em cozinhas. Das portas invadidas pela fuligem subia uma chama gorda, uma chama bêbeda e inchada. As caras das velhas, os queixos a abanar das mulheres e os peitos viscosos coziam-se nos seus raios enfumarados. O suor, rosado como sangue, rosado como a escuma de um cão raivoso, corria ao longo daqueles montões espessos de carne humana que exalavam um fedor açucarado. Três cozinheiras, sem contar com as lavadoras de loiça, preparavam o banquete da boda, e era a Reizl quem comandava, a Reizl com os seus oitenta anos, tradicional como um rolo da Tora, minúscula e corcunda.
Precisamente antes do jantar, um jovem desconhecido dos convidados introduziu-se no pátio. Disse que queria ver Bénia Krik. Chamou Bénia Krik de parte.
— Olhe, Rei — disse o jovem —, tenho duas palavrinhas a comunicar-lhe. Mandou-me cá a tia Khana da Rua Kostetskaia…
— Está bem — respondeu Bénia Krik, dito o Rei —, e que duas palavrinhas são essas?
— Chegou ontem um novo chefe ao comissariado da polícia, foi o que a tia Khana me mandou dizer-lhe.
— Isso já eu sabia anteontem — respondeu Bénia Krik. — Continua.
— O chefe reuniu todo o pessoal e fez-lhe um discurso, no comissariado…
— Vassoura nova varre bem — respondeu Bénia Krik. — Precisa de uma rusga. Continua…
— E sabe quando vai ser essa rusga, Rei?
— Amanhã.
— Senhor Rei, essa rusga é hoje.
— Quem te disse isso, rapaz?
— Foi a tia Khana que mo disse. Conhece a tia Khana?
— Conheço a tia Khana. Continua.
— O chefe reuniu os polícias e fez-lhes um discurso. «Temos de sufocar Bénia Krik, disse ele, porque onde há uma Majestade Imperial não pode haver um rei. Hoje, quando Krik casar a irmã e estiverem todos lá, é o momento certo para fazer uma rusga…»
— Continua.
— … Então a bófia toda começou a acobardar-se. Disseram: se houver uma rusga hoje, enquanto o Bénia estiver nas bodas, vai ficar fulo e muito sangue vai correr. Então o chefe respondeu-lhes: o meu amor-próprio é mais importante…
— Está bem, pira-te — respondeu o Rei.
— E o que digo à tia Khana no respeitante à rusga?
— Diz-lhe: o Bénia ficou ao corrente no respeitante à rusga.
E o jovem foi. Três ou quatro amigos de Bénia seguiram-lhe as pisadas. Disseram que voltariam dentro meia hora. E voltaram ao cabo de meia hora. E é tudo.
As pessoas sentavam-se à mesa sem respeito pela antiguidade. Uma velhice estúpida não é menos desprezível do que uma juventude cobarde. Sem respeito, também, pela riqueza. O forro de um porta-moedas bem recheado é cosido com lágrimas.
No lugar de honra estavam sentados os noivos. A seguir estava Sender Eichbaum, o sogro do Rei. Cabia-lhe esse direito. É bom que se conheça a história de Sender Eichbaum, porque não é uma história das mais simples.
Como foi que Bénia Krik, bandido e rei dos bandidos, se tornou genro de Eichbaum? Como foi que ele se tornou genro de um homem que possuía sessenta vacas leiteiras menos uma? Pois bem, isso teve que ver precisamente com um golpe. Havia um ano apenas, Bénia escrevera uma carta a Eichbaum.

Herr Eichbaum — escreveu ele —, peço-lhe que, amanhã de manhã, tenha a bondade de colocar debaixo do arco do número 17 da Rua Sofiiskaia a quantia de vinte mil rublos. Se o não fizer, é o fim do mundo, e toda a Odessa irá falar de si. Os meus melhores cumprimentos. Bénia, o Rei.

Três cartas, cada qual mais clara que a anterior, ficaram sem resposta. Bénia, então, tomou medidas. Eram nove e foram lá de noite, empunhando grandes cacetes. Os cacetes estavam forrados com estopa alcatroada. Na quinta de Eichbaum, nove estrelas flamejantes se iluminaram. Bénia rebentou com os cadeados da granja e fez sair as vacas uma a uma. Um tipo com uma faca esperava-as. De um só golpe, derrubava-as e enterrava-lhes a faca no coração bovino. Floriram tochas como rosas de fogo na terra ensanguentada, soaram tiros de pistola. Era com os tiros que Bénia afugentava as operárias que tinham acorrido à granja. Seguindo o seu exemplo, outros bandidos disparavam para o ar, porque, caso não se dispare para o ar, pode matar-se alguém. E assim, quando a sexta vaca caía com um mugido de agonia aos pés de Bénia, Eichbaum, correndo e apenas em ceroulas, saiu ao pátio e perguntou:
— Que é isto, Bénia, onde é que isto tudo nos leva?
— Se eu não tiver o dinheiro, o senhor não terá as vacas, Herr Eichbaum. É matemático.
— Entra cá, Bénia.
Dentro de casa, chegaram a acordo. Dividiram entre os dois as vacas degoladas. Eichbaum viu garantida a sua imunidade e foi-lhe mesmo emitido um atestado com carimbo. O milagre, porém, aconteceu mais tarde.
Na terrível noite do assalto, quando as vacas apunhaladas mugiam e os vitelos escorregavam no sangue das mães, quando as tochas dançavam como virgens negras e as leiteiras davam grandes saltos para os lados e berravam à vista dos canos amigáveis das brownings — nessa terrível noite, portanto, Tsília, filha do velho Eichbaum, saiu para o pátio em camisa decotada. E a vitória de Bénia tornou-se a sua derrota.
Dois dias depois, Bénia, sem aviso prévio, devolveu a Eichbaum todo o dinheiro que lhe tinha confiscado e, a seguir, foi de visita a casa dele. Vestia um fato cor-de-laranja e, sob o punho da camisa, trazia uma pulseira de diamantes; entrou na sala, cumprimentou e pediu a Eichbaum a mão da sua filha Tsília. O velho foi acometido por um ligeiro ataque, mas recompôs-se. O velho ainda tinha uns bons vinte anos para viver.
— Ouça, Eichbaum — disse-lhe o Rei —, quando o senhor morrer, mando enterrá-lo no melhor cemitério judeu, logo à entrada. Mando-lhe pôr lá um monumento de mármore cor-de-rosa, Eichbaum. Faço de si o decano da sinagoga Bródski. Largo o meu ramo, Eichbaum, e torno-me sócio no seu negócio. Vai ter duzentas vacas, Eichbaum. Mato todos os produtores de leite menos o senhor. Não haverá ladrão que ponha o pé na rua onde o senhor more. Mando-lhe construir uma casa de campo na décima sexta estação… Além disso, Eichbaum, lembre-se de que o senhor, na sua juventude, também não era nenhum rabino. Não vamos andar por aí a gritar aos quatro ventos quem falsificou o testamento, hã?.. E o seu genro será um Rei, não um moncoso qualquer, mas um Rei, Eichbaum.
Bénia Krik, porque estava apaixonado e porque a paixão governa o mundo, alcançou os seus objectivos. O jovem casal viveu três meses na sumarenta Bessarábia, no meio das vinhas, do alimento abundante e do suor do amor. Depois Bénia voltou para Odessa a fim de casar Dvoira, sua irmã de quarenta anos que sofria da doença de Bazedow. Ora bem, e agora, depois de termos contado a história de Sender Eichbaum, podemos voltar ao casamento de Dvoira Krik, a irmã do Rei.
No jantar de casamento foram servidos perus, frangos assados, gansos, peixe recheado e sopa de peixe na qual as rodelas de limão formavam lagos de cintilações nacaradas. Por cima das cabecinhas mortas dos gansos balançavam-se flores como penachos farfalhudos. Mas desde quando a espuma das marés do mar de Odessa traz à costa frangos assados?
Tudo o que há de mais nobre no nosso contrabando, tudo o que faz a glória da nossa terra, de uma ponta à outra, nesta noite azul e estrelada, cumpria a sua obra sedutora e destrutiva. Um vinho oriundo de algures aquecia os estômagos, impedia deliciosamente o uso das pernas, enevoava o cérebro e provocava arrotos, sonoros como o chamamento do clarim ao combate. O cozinheiro negro do Plutarco, chegado três dias antes de Port-Saïd, tinha feito passar pelas alfândegas garrafas bojudas de rum jamaicano, Madeira untuoso, charutos da plantação de Pierpont Morgan e laranjas dos arredores de Jerusalém. É isto que a espuma das marés do mar de Odessa traz à costa, é isto que os mendigos de Odessa podem por vezes abichar nos casamentos judeus. No casamento de Dvoira Krik tiveram rum jamaicano, e foi por isso que, depois de se terem enfrascado como gordos porcos não cacheres, os pedintes judeus se puseram a bater com as muletas de maneira ensurdecedora. Eichbaum, com o colete desabotoado, olhava de olho franzido para aquela sociedade desvairada e soluçava amorosamente. A orquestra tocava uma marcha. Era como uma parada de divisão militar. A marcha, apenas a marcha. Os bandidos, sentados em fileiras cerradas, a princípio estavam um pouco intimidados com a presença de estranhos, mas depois relaxaram. Liova Russkov partiu uma garrafa de vodca na cabeça da sua bem-amada Mónia. O Artilheiro disparou para o ar. O regozijo atingiu contudo o seu máximo quando, de acordo com as tradições ancestrais, se começaram a oferecer os donativos e prendas aos noivos. Os shamashes das sinagogas haviam trepado para cima das mesas e anunciavam a cantar, ao som da marcha frenética, as quantidades de rublos e de colheres de prata. E foi aí que os amigos de Bénia mostraram que o sangue azul era qualquer coisa e que os princípios cavaleirescos da Moldavanka ainda não se tinham extinguido. Com um gesto displicente da mão atiravam para as bandejas de prata moedas de ouro, anéis de brasão, colares de coral.
Aristocratas da Moldavanka, estavam enfiados em coletes cor de framboesa, casacos ruivos esticavam-lhes os ombros e uma pele azul celeste estalava-lhes nas pernas grossas. Direitos como is, com o ventre proeminente, os bandidos batiam o ritmo da música, gritavam «copo abaixo!» e lançavam flores à noiva. E ela, Dvoira, a irmã de Bénia Krik, dito o Rei, tinha quarenta anos, um bócio protuberante e olhos que lhe sobressaíam das órbitas. Estava sentada numa montanha de almofadas ao lado de um lingrinhas comprado com o dinheiro de Eichbaum e que, de tão acabrunhado, se tornara mudo.
A cerimónia das prendas chegava ao fim, os shames estavam afónicos, e o contrabaixo já não se entendia com o violino. De repente sentiu-se um leve cheiro a chamusco por cima do pequeno pátio.
— Bénia — disse Krik pai, um velho carroceiro conhecido entre os carroceiros por ser um bruto —, Bénia, tenho a impressão sabes de quê? Tenho a impressão de que a fuligem está a arder.
— Velho — respondeu o Rei ao seu pai embriagado —, faça-me o obséquio, coma e beba p’ra frente e não se deixe amofinar dessa maneira pela estupidez…
E o pai Krik seguiu o conselho do filho. Comeu e bebeu p’ra frente. A nuvenzinha de fumo, porém, tornava-se cada vez mais ameaçadora. Nalguns lugares, pedaços de céu já se rosavam, e já uma língua de fogo, qual espada, trespassava os ares. Os convidados, soerguendo-se, começavam a farejar o cheiro, e as suas caras-metades soltavam gritinhos. Os bandidos, então, puseram-se a olhar uns para os outros. E só Bénia, que não reparava em nada, estava inconsolável.
— Estão a estragar-me a festa — gritava ele, desesperado —, meus amigos, sede simpáticos e comei mais, bebei mais um copinho…
Nesse momento apareceu no pátio o mesmo rapaz que já tinha vindo no princípio da noite.
— Rei — disse ele —, tenho duas palavrinhas a comunicar-lhe.
— Está bem, diz lá — respondeu o Rei —, tens sempre duas palavrinhas de reserva…
— Rei — continuou, perdido de riso, o jovem desconhecido —, é mesmo de morrer, a esquadra está a arder como uma vela.
Os lojistas emudeceram de repente. Os bandidos puseram-se na chacota. Manka, de sessenta anos, a antepassada de todos os bandidos do bairro, meteu dois dedos na boca e soltou um assobio tão estridente que os vizinhos oscilaram.
— Mânia, a senhora não está no trabalho — fez-lhe Bénia o reparo —, um pouco de contenção, Mânia…
O rapaz que trouxera a espantosa notícia continuava a torcer-se de riso.
— Saíram do centro, eram pelo menos quarenta — contava ele mexendo as mandíbulas —, e saíram para a rusga; ainda não tinham dado quinze passos quando tudo começou a arder… Corram para lá se querem…
Bénia, contudo, proibiu aos convidados que fossem ver o incêndio. Foi ele, com dois companheiros. A esquadra ardia conscienciosamente, dos quatro lados. Os agentes, sacudindo os traseiros, corriam pelas escadas cheias de fumo e atiravam maletas das janelas. Os presos esgueiravam-se à sorrelfa. Os bombeiros estavam possuídos de um grande fervor, mas a bomba mais próxima, afinal, não tinha água. O chefe, a tal vassoura suposta de varrer bem, postava-se no passeio defronte e mordiscava os bigodes que lhe entravam na boca. A nova vassoura estava inerte. Passando diante do chefe, Bénia bateu-lhe uma pala militar.
— Os meus cumprimentos da noite, Vossa Senhoria — disse ele num tom complacente. — O que me diz a uma desgraça como esta? É um verdadeiro pesadelo, quanto a isso, veja só…
Olhou fixamente para o edifício em chamas, sacudiu a cabeça e fez um barulho com os lábios:
— Ai, ai, ai…
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Quando Bénia voltou para casa, já estavam a apagar os lampiões no pátio e a aurora começava a eclodir. Os convidados tinham-se ido embora e os músicos dormitavam, com as cabeças apoiadas nos braços dos contrabaixos. Apenas Dvoira não tinha a intenção de dormir. Com ambos os braços empurrava o marido, todo envergonhado, para a porta do quarto nupcial e lançava-lhe olhares carniceiros, como um gato que segura o rato na boca e o vai degustando às dentadinhas.

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