2.17.2013

O meu romance dava uma vida


É policial, mas como não sou polícia, apesar de contar a polícia como amiga, nem bandido, se bem que tenha amigos bandidos mas demasiado taciturnos e cautelosos, nem sou amigo de um inspector da Judiciária que me oriente, nem de longe  conheço alguém por dentro do ramo do empreendedorismo com cariz no fundo desmascarador e antifraudiano de nome Franklim, nem possuo a felicidade de possuir um primo guarda prisional com quem iria de bom grado ao alterne beber um ganda copo e onde encontraria bêbedo e solto o dirigente desportivo e o sucateiro, corto o policial. E também porque não existe um bom dicionário actualizado de calão e da pègre portuguesa e também porque não tenho a mania de que não sou intelectual, corto o policial.

Começa o meu romance já não policial mas civil pelo EPÍLOGO (uma quase inovação se me dão licença) mas como já o bestseller português Dostoievski começou o seu Crime e Castigo pelo crime (o epílogo) não quero incomodar os puristas da inovação e corto o epílogo, mas é como se me cortasse os tomates. Pela ordem natural das coisas, depois do epílogo vem (viria) o último capítulo, o 49, territorialmente o primeiro em termos de folheamento do romance e explicando com magistralidade as causas sociais do crime em termos marxistas ou não, e psicológicas em termos freudianos ou talvez, mas como já não tenho crime nem epílogo, corto o capítulo 49. Assim se perdem mais umas 50 páginas que davam para a redacção de um bom mestrado em qualquer coisa.

Restam 48 capítulos bem fornidos dos quais 17 escalpelizam as consequências do crime (o castigo) e a sibéria das nossas almas sem Deus. Mas como já não tenho crime também não posso ter castigo nem redenção. Corto mais 17. Corto sem contemplações todos os meus gangsters egocêntricos porque sem crime não há gangster. Elimino – não escondo sob as lajes da garagem para memória futura – todas as armas que procurei com tanto afinco nos sites especializados porque sem arma não há crime e sem crime não há arma.

O cleaner implacável vai correndo, restam 31 capítulos. Lixo, lixo, lixo, o cleaner não hesita: eles amam-se e intervingam-se, porque a vingança é passional, eles desamam-se e vingam-se – neles, nos outros e na puta da sociedade que lhes paga bem de volta. Eles enlouquecem e agarram-se a Deus e ao Diabo. Mas como não há crime a ligar tanta paixão, sai tudo muito chocho, muito rebuscado e inverosímil, embora belo, com muito silêncio gritante, muita intertextualidade, ampla gama de metáforas, muita auto-ironia encobridora da presunção, munta estrangeirada, muita carência de vida, embora não se exija vida à arte, à boa maneira da narrativa portuguesa de hoje. Corta. Já pouco resta, corramos agora, ó cleaner, os restaurantes finos, a tasca ainda típica do meu velho tio, o monte alentejano, as paisagens tibetanas, o mar oceano, a cagança da erudição, este país de contrastes, a natureza morta mas bem iluminada no caixão, a nostálgica fotografia, a infância difícil, a bebedeira monstra mas bem controlada pela angústia, o cemitério dos deuses, o Porto segunda pátria minha, Beja a terceira, Braga a quarta, os amores e o sexo, os arrotos de sardinhada e de erotismo. Corta. A minha vida sou eu entre quatro paredes, quatro ruas, dois transportes, três cafés, a televisão, o bingo, as malhas da Rede e a biblioteca municipal (corta também esta parte e a do funcionário cansado). Corto tudo por excesso de solidão. E com razão: que leitor acreditaria num eunuco e sociopata literário como eu ousando descrever as indescritíveis, julgadas mas nunca experimentadas cenas de sexo?  E que leitor de mim seria eu com tanta falta de vergonha? Que pena, e que pena corajosa, o meu romance assim cortado de raízes, tronco, ramos e folhagens. Mas dava uma vida cheia, digam lá.

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