11.18.2010

Caras


O nosso gato ou o nosso cão não têm focinho, nem mesmo focinhito, focico, fociquito. Têm caras. Conhecemo-los há anos e vemos-lhes na cara as rugas da velhice e os pensamentos tristes. Através do pêlo cada vez menos brilhante e menos espesso, como que vemos ao raio-x a próstata inchada e de contornos irregulares, o baço ferido, o coração cansado, os pulmões renitentes, o sangue a descorar até ficar azul, o fígado gordo, o veneno doce — as nossas doenças. Os nossos cães somos nós, não há na natureza concrescência mais conseguida, nem mais terrível se pensarmos no fenómeno da inter-escravatura. O nosso cão somos nós. Por isso, quando o nosso cão morre, nós morremos.
O senhor Arménio carpinteiro, que enriqueceu, do ponto de vista dele, a fazer painéis, seja lá isso o que for, ao ponto de comprar um Mercedes para a filha e outro para ele, é que não esteve com meias medidas, expulsou o cão que possuía há muitos anos e tinha preso perpetuamente num canto do barracão do quintal, por motivo de que o animal estava velho, era incontinente e se peidava. O cão tinha aquele contrato escravo e desejou cumpri-lo: posto na rua, vive há muitos meses na escaleira exterior da própria casa do senhor Arménio, não sai dali, vive da caridade do povo. Olho para a cara do cão e vejo aquilo por que passo no momento em que olho: filosofia, tristeza, revolta, estupidez, marasmo, vingança, alguma alegria(!). Este cão vai morrer, coitadinho, diz o povo que passa. O senhor Arménio defende-se dizendo que o cão já não é dele. Mas eu gosto de imaginar que o cão espera a morte (já tem a morte na cara) ali na casa, afinal, do senhor Arménio, para lha poder atirar à cara quando morrer. E o senhor Arménio defende-se da morte dizendo que o cão já não é dele.

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