11.27.2010

Ghost in translation

As minhas estatísticas íntimas e instintivas apontam para mais de 70,3% de obras traduzidas do total da literatura que se lê em Portugal. Nunca é demais, então, falar hoje e sempre de tradução. A seguir falarei das oitenta prostitutas apalavradas para entrarem com os georgianos no hotel da NATO, baratinando, eles com elas, toda a segurança. Por amor de Deus, foi tudo uma farsa dentro da farsa terrível, mas por favor, não metam os georgianos nisto porque o que veio a Lisboa foi a respeitável Máfia Georgiana, a do poder. Quem se habituou a ver os georgianos (ainda não estão traduzidos) como feirantes de Moscovo por quem tínhamos de passar para comprar um carro ou um quilo de carne da boa, que eram falsos médicos (compravam os diplomas), que tiravam os maços grossos de notas do bolso de trás para pagarem uma garrafa nos hotéis proibidos, quem viu os georgianos assim, e com as suas putas no hotel da NATO, não sabe o que são georgianos: pobres mas cultos e hospitaleiros, os melhores na música e no cinema (lembro Iosselini) no tempo da URSS, muito bons na literatura e na ciência. Ao poder, como acontece sempre, chegaram os georgianos Stálin e Béria e, depois, os descendentes dos feirantes de Moscovo. É sempre assim. Por favor, não metam os georgianos nisto.
O que se perde na tradução poderia ser minorado se não existissem os «bons revisores», mas eu prefiro chamar-lhes correctores (porque corrigem e dão correctivos). São os betinhos da forma escrita, eu chamo-lhes correctinhos. Os «bons revisores» são contratados para policiar textos traduzidos, até sabem um pouquinho de inglês e de francês, é-lhes facultado o original e, onde o original inova, foge à ordem, faz boa escrita original com chama e vida, os correctinhos repõem a ordem estabelecida, banalizam, gramaticalizam, brandem o cliché, complicam (são burocratas) e tornam tudo muito, muito pesado. São os funcionários exemplares da língua. Tenho até a impressão de que os inventores do «quão», do «imenso charme» e do «algo» foram os correctinhos e não os tradutores. Os editores gostam deles, mesmo quando são editores-escritores muito criativos, mas consta que não lhes entregam os seus livros para rever. Já dou exemplos, mas agora vou fumar um cigarro que já estou a ficar nervoso.
Há depois os correctores gralhicidas que já mereciam trabalhar nos serviços de desinfestação das câmaras. Merecem o respeito dos cidadãos, se não aspirarem a ser «bons revisores», o escalão mais alto. Há tradutores que são «bons revisores» que sabem línguas e têm o curso e só aspiram a fugir da pobreza e ir para Bruxelas. Já dou exemplos, só um porque não posso perder o outro fio da filière géorgienne, o exemplo de um «bom tradutor» francês que traduziu um bom livro e traduziu putabekh, um termo de caça, por «charlatan». E tinha razão porque aquilo era uma metáfora e com as metáforas nem os «bons revisores» se metem. Um putabekh, como devem adivinhar, é um daqueles cães de caça que se agitam muito, ladram muito, mas não produzem grande coisa em termos de caça. Eu diria que são uns ladra-baratos. Mas era uma metáfora e para metáfora charlatan serve muito bem. Só de me lembrar que os georgianos até metáforas vendiam na feira. Eu dou exemplos estrangeiros porque não quero cá merdas e porque sou um francófono português que se orgulha de não ter francófono francês que lhe chegue às solas. Ora bem, o tradutor universal é caracterizado por sofrer de brevidade memorial crónica e pensar que o leitor também sofre disso (ou já se esqueceu de que não), de maneira que o meu cher colègue français, ou belga, escreveu duas páginas adiante, traduzindo Léon Tolstoï fielmente, pela boca de uma personagem, que não sei quê não sei quê, «essa metáfora de caça» (justamente, a do charlatan). O livro em questão é Anna Karénine, de Léon Tolstoï. É fascinante o mundo da tradução e dos seus fantasmas. Continuarei a falar dele até que a voz e a verve me feneçam (encontrei isto numa tradução).

1 comentário:

Anónimo disse...

Que delícia de texto.
Apetece roubá-lo, nem que apenas uma vírgula.


Jonas

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