12.22.2010

O Natal existe, e peço desculpa por voltar a citar a minha avó

Os mais novos podem já ter amputado do inconsciente o Natal, sobretudo os citadinos, mas nós, velhos pacóvios com pretensões intelectuais, não podemos simplesmente repudiar o Natal porque, logo na infância, o Natal formou-nos para sempre uma parte do carácter: o gosto da família, e também do ajuste de contas familiar, da festa, do reencontro, das ilusões da solidariedade e da abundância – nada a ver com nascimentos de Cristos, isso sempre foi secundário no Natal, mesmo para os padres e os fundamentalistas católicos que o celebravam verdadeiramente à mesa pagã com a família e não nos altares. Ou seja, a tentativa de aproveitamento da Igreja ficou-se pela rama, pela liturgia, pelo léxico cristão, pela retórica bíblica – nada de profundo.
A minha casa patriarcal era pobre e, quando se reunia quase toda a família – havia ramos que já se tinham auto-patriarcalizado – não cabíamos todos à mesa e improvisavam-se outras mesas na cozinha, na varanda e, como já não tínhamos gado, uma mesa na corte para os menores e as ovelhas ronhosas da família. Sabeis o que é uma corte? Que me lembre, a toda a cozinha e aos outros preparativos presidia sempre a minha avó, curvada e diligente como a velha judia Reizl do conto de Issac Bábel. A mesa da corte era a mais divertida: as ovelhas ronhosas eram jovens, até havia mães solteiras, e chegavam de Lisboa e do Porto, falavam a linguagem rebelde e verdadeira que os putos adoram, sabiam desmascarar e arremedar os cagões da família – os comerciantes que se tinham safado, porcinos ou fuinhas, os que tinham chegado a quase padres, ou a advogados ou a patos-bravos, e que passavam a nota sorrateira, de maneira a que todos vissem, para os bolsos dos meus avós que bem precisavam. Vinha família de todo o lado, até da América – “queres tu um par de nozes?”, com aquele sotaque, e também “isto parece do tempo de D. Afonso Henriques, nem têm talaveche” – para cumprirem o ritual. No dia seguinte ou na própria noite, depois de se embebedarem ritualmente (num Natal chegou a haver pancadaria), os ricos iam para o hotel de Chaves ou de Vila Real. A grande família era lesta em dispersar-se.
Não havia prendas, os comerciantes ainda não tinham imposto e muito menos generalizado esse costume lucrativo. Para os miúdos sim – umas meias, um boné, uma boa moeda ou uma nota das pequenas. A minha avó era sábia: todos gostam de receber prendas, mas também gostam de dar. Como alguns não têm… Não havia pais-natais, ali só se acreditava no poder do trabalho e do dinheiro e, se calhar, do Salazar.
Havia uma fase em que a festa entristecia. A culpada: a minha avó. Não, as culpadas: a minha avó, as ausências e as presenças. Era quando ela, de hora a hora mais carecida e fragilizada com aquela alegria, recordava os ausentes, chamava os mortos à nossa presença. A festa também era tristeza.
Agora, em cada Natal, que não posso evitar porque me está no sangue, cada vez me pareço mais com a minha avó: lembro os ausentes que até podiam estar presentes mas já não usam fazê-lo; lembro os natais que, por pseudo-convicção, passei orgulhosamente sozinho; lembro os mortos que já vou tendo, mas esses têm desculpa para não estarem. E, de ano para ano, passo uns natais cada vez mais tristes, com muito vinho, muita comida, muito boa companhia e muita alegria.

Sem comentários:

contacto: