1.07.2011

Dou-lhe 9,85/10, classifico-o em 2º entre os 4 grandes, e Nabokv fica lá fora à porta do meu gabinete a reclamar da má nota que lhe dou

A meio da sua vida, entre 1860 e 1862, Fiódor Dostoiévski escreveu os Cadernos da Casa Morta, que já começara a preparar no Outono de 1859. O livro foi sucessivamente publicado em partes no semanário Rússki Mir e, depois, na revista Vrémia. Quando as coisas acontecem nel mezzo del cammin di nostra vita — na Rússia abundam as análises críticas que comparam a “Casa Morta” ao “Inferno” de Dante —, há o que vem de trás e há o que vai condicionar o futuro: não deixa de ser significativo que foi depois deste livro que Dostoiévski compôs o essencial da sua obra romanesca — Crime e Castigo, O Jogador, O Idiota, O Eterno Marido, Os Demónios, O Adolescente, Os Irmãos Karamázov. Classificar este livro é difícil: não é romance, pela forma óbvia de sequência de “reportagens” prisionais que apresenta, além de que a história não tem enredo, é um fio de cenas e reflexões do narrador, sobre ele próprio e sobre os companheiros de reclusão; mas também não é um puro livro de reportagens, porque inclui elementos romanescos; também não é autobiográfico porque, simplesmente… não o é, embora contenha elementos biográficos (não esqueçamos que, sendo Dostoiévski um preso político — logo, presumível inocente —, erige em narrador um preso de direito comum, assassino confesso da mulher — logo, claramente culpado); também não é um livro de ensaios filosóficos ilustrados com cenas da vida prisional, embora a ideia da liberdade como condição imprescindível da existência humana percorra todo o livro. Cadernos da Casa Morta será mais a transposição e interpretação (já a frio) das impressões, transformadas em narrativa literária, que o escritor viveu nos quatro anos que passou nos trabalhos forçados (1849-1853), num presídio da Sibéria.

Em jovem, o fogoso Fiódor Dostoiévski frequentava o círculo revolucionário de Petrachévski (ora, parece que se limitavam a ler em colectivo as obras de Fourier e de outros socialistas libertários, a tentar elaborar planos de motins nunca postos em prática, que queriam ter uma tipografia…). Por causa disso, Dostoiévski foi detido e encarcerado na fortaleza petersburguense de Pedro e Paulo, foi acusado de conspiração contra a ordem estatal e, juntamente com outros vinte membros do círculo, foi condenado à pena capital por fuzilamento. Só na praça da execução, quase encostado ao poste, lhe anunciaram a substituição desta pena por um castigo mais brando: oito anos de trabalhos forçados na Sibéria. Destes, cumpriu quatro como recluso e os outros quatro em desterro, como soldado raso.

É essa experiência que Dostoiévski nos conta. Escolheu pôr em cena o “ser humano” a viver no inferno prisional, enclausurado e preso à grilheta (a grilheta é personagem deste livro), o povo simples (“há caracteres profundos, fortes, maravilhosos, e é bom encontrar verdadeiro ouro sob esta casca grosseira”). Numa sociedade ainda escravagista, em que o conceito de liberdade era relativo, a prisão reflectia esse estado social e, quando se misturavam presos políticos (no fundo, os verdadeiros “homens livres” mas com a liberdade coarctada pela prisão) com presos comuns, o inferno, a barbárie, tornavam-se ainda mais violentos. Dostoiévski, em Cadernos da Casa Morta, como que dá um rosto humano geral aos homens encarcerados e agrilhoados, sem fazer distinções. Os vectores do seu ponto de vista não são o individualismo, o elitismo ou o moralismo: Dostoiévski conta a história do criminoso em geral, enviando o recado de que este não deixa de sentir e pensar como um ser humano, de ter a sua dignidade. Assim, o livro adquire um estilo épico. Dostoiévski também pensa nas causas do crime e chega à conclusão: a diferença entre os homens servos que vivem em “liberdade” e os presidiários não é tão grande quanto isso; para eles, tal como para os grilhetas, as leis são as mesmas.

Antes de Dostoiévski, ninguém na Rússia havia descrito os presidiários tão vivamente, com tanto realismo e veracidade. Disse Tolstói, um crítico exigente: “Li-o pela segunda vez […] e não conheço um livro melhor em toda a literatura moderna […] Não é o tom, mas o ponto de vista que é admirável — sincero, natural, cristão.”

6 comentários:

a vida é larga disse...

excelente post! muito bom!

luis m. jorge disse...

GAF, posso saber porque é que dá má nota ao Nabokov? Muito obrigados.

Filipe Guerra disse...

Luis m. Jorge: transcrevi a frase de Nabokov (ligeiramente modificada) que classificou os 4 grandes escritores russos, por esta ordem: Tolstói, Gógol, Tchékhov e Turgueniev, excluindo Dost e Saltikov-Chédrin que ficariam à porta do seu gabinete, etc., etc. O furor classificativo de Nabokov procriava efeitos humorísticos de grande qualidade como este. É evidente que o meu título pretendeu ser uma crítica às classificações e às estrelinhas de livros e autores que grassam por aí. Eu, classificações, é só as que resultam dos resultados: 1 vitória 3 pontos, um empate 1 ponto. Vitórias na secretaria das autoridades é que não.

luis m. jorge disse...

Não tinha percebido. Ando um bocado lerdo. Eu gosto das excentricidades do Nabokov.

Há anos encontrei esta que publiquei num post um bocado pomposo:

http://regressoaveneza.blogspot.com/2005/10/o-silncio-de-nabokov-sobre-veneza.html

Edgar V. Novo disse...

Caro GAF,

Poderei então presumir que esta obra teve uma grande influência - fundamental até - no último grande romance de Tolstói, Ressurreição?

Filipe Guerra disse...

Ega, não me atreveria a afirmá-lo no que se refere à "influência fundamental", porque o tema de Ressurreição é muito mais vasto e complexo, mas que há pontos de contacto naquilo a que Tolstoi chama o "ponto de vista", lá isso há.

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