É policial, mas como não
sou polícia, apesar de contar a polícia como amiga, nem bandido, se bem que
tenha amigos bandidos mas demasiado taciturnos e cautelosos, nem sou amigo de
um inspector da Judiciária que me oriente, nem de longe conheço alguém por dentro do ramo do
empreendedorismo com cariz no fundo desmascarador e antifraudiano de nome Franklim,
nem possuo a felicidade de possuir um primo guarda prisional com quem iria de
bom grado ao alterne beber um ganda copo e onde encontraria bêbedo e solto o dirigente
desportivo e o sucateiro, corto o policial. E também porque não existe um bom
dicionário actualizado de calão e da pègre
portuguesa e também porque não tenho a mania de que não sou intelectual,
corto o policial.
Começa o meu romance já
não policial mas civil pelo EPÍLOGO (uma quase inovação se me dão licença) mas
como já o bestseller português
Dostoievski começou o seu Crime e Castigo
pelo crime (o epílogo) não quero incomodar os puristas da inovação e corto o
epílogo, mas é como se me cortasse os tomates. Pela ordem natural das coisas,
depois do epílogo vem (viria) o último capítulo, o 49, territorialmente o
primeiro em termos de folheamento do romance e explicando com magistralidade as
causas sociais do crime em termos marxistas ou não, e psicológicas em termos
freudianos ou talvez, mas como já não tenho crime nem epílogo, corto o capítulo
49. Assim se perdem mais umas 50 páginas que davam para a redacção de um bom mestrado
em qualquer coisa.
Restam 48 capítulos bem
fornidos dos quais 17 escalpelizam as consequências do crime (o castigo) e a sibéria
das nossas almas sem Deus. Mas como já não tenho crime também não posso ter
castigo nem redenção. Corto mais 17. Corto sem contemplações todos os meus
gangsters egocêntricos porque sem crime não há gangster. Elimino – não escondo
sob as lajes da garagem para memória futura – todas as armas que procurei com
tanto afinco nos sites especializados porque sem arma não há crime e sem crime
não há arma.
O cleaner implacável vai
correndo, restam 31 capítulos. Lixo, lixo, lixo, o cleaner não hesita: eles
amam-se e intervingam-se, porque a vingança é passional, eles desamam-se e
vingam-se – neles, nos outros e na puta da sociedade que lhes paga bem de volta.
Eles enlouquecem e agarram-se a Deus e ao Diabo. Mas como não há crime a ligar
tanta paixão, sai tudo muito chocho, muito rebuscado e inverosímil, embora
belo, com muito silêncio gritante, muita intertextualidade, ampla gama de
metáforas, muita auto-ironia encobridora da presunção, munta estrangeirada, muita
carência de vida, embora não se exija vida à arte, à boa maneira da narrativa
portuguesa de hoje. Corta. Já pouco resta, corramos agora, ó cleaner, os
restaurantes finos, a tasca ainda típica do meu velho tio, o monte alentejano, as
paisagens tibetanas, o mar oceano, a cagança da erudição, este país de contrastes, a natureza morta mas
bem iluminada no caixão, a nostálgica fotografia, a infância difícil, a
bebedeira monstra mas bem controlada pela angústia, o cemitério dos deuses, o
Porto segunda pátria minha, Beja a terceira, Braga a quarta, os amores e o
sexo, os arrotos de sardinhada e de erotismo. Corta. A minha vida sou eu entre
quatro paredes, quatro ruas, dois transportes, três cafés, a televisão, o
bingo, as malhas da Rede e a biblioteca municipal (corta também esta parte e a
do funcionário cansado). Corto tudo por excesso de solidão. E com razão: que
leitor acreditaria num eunuco e sociopata literário como eu ousando descrever
as indescritíveis, julgadas mas nunca experimentadas cenas de sexo? E que leitor de mim seria eu com tanta falta
de vergonha? Que pena, e que pena corajosa, o meu romance assim cortado de
raízes, tronco, ramos e folhagens. Mas dava uma vida cheia, digam lá.
1 comentário:
Digo.
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