8.06.2010

Liudmila Petruchevskaia



Esta senhora que não é propriamente cantora é no entanto uma senhora escritora e dramaturga de génio (digo de génio porque é despretensiosa, a condição sine qua non do génio). Em boa hora a Relógio d'Água, sempre de olho alerta, vai publicar em breve o seu romance Hora: noite.Lê-se e não se duvida: era esta a vida na União Soviética.E então era este o «homem novo socialista», este ser asselvajado, mesquinho, carente, tremente, sofredor e tantas vezes digno? Num ambiente daqueles, de apartamentos comunais e falta de tudo, era mais difícil encontrar o «homem novo» na União Soviética do que um bom defesa esquerdo em Portugal. Ora pois bem, Petruchevskaia arrasa esta nossa opinião, este nosso confinado pensamento ocidental: a miséria e a grandeza que descreve não são soviéticas, são humanas. Explica ela, no livro autobiográfico A Rapariguinha do Hotel Metropol, numa nota ao leitor ocidental, neste caso francês:

Caro leitor!
Até aos meus cinquenta anos, fui uma autora proibida no meu país, sem qualquer livro publicado, vá-se lá saber porquê. As minhas peças eram encenadas clandestinamente, os meus romances passavam de mão em mão. A quem incomodavam? Aos chefes do partido, sem dúvida... Quiseram até meter-me na cadeia, por ter ofendido o Presidente (na altura em que os nossos tanques blindados começaram a esmagar pessoas em Vilnius).
Ora o comum das pessoas sabiam muito bem, sem a ajuda de qualquer literatura, coisas sobre as suas vidas que eu nem sequer ousava descrever. Mas, sobretudo, dizia para mim própria que escrevia não sobre a vida do homem soviético mas sobre a do homem enquanto tal. Sobre temas eternos. Cada ser, por todo o lado no mundo, sofre, é ciumento, adoece, fica velho, morre (como as personagens de Maupassant, pensava eu). Acontece a qualquer um de nós ser feliz de vez em quando. Muitos de nós amam e por vezes têm dificuldade em manter junto deles aqueles que amam, é-lhes penoso viverem na vergonha (lembremo-nos de Madame Bovary). Por vezes, os pais mal suportam os filhos tornados adolescentes, alguns saem-se melhor com os bebés. Os filhos, ao crescerem, têm problemas com os pais. Eu dizia para mim que era esta a nossa sina, de todos nós. E no entanto não me publicavam. Mas os anos passaram. E as portas acabaram por se abrir, começaram a editar-me - incluindo no estrangeiro. Os meus livros saíram em vinte países. Recebi muitos prémios. E o que me disseram os críticos estrangeiros? Que eu escrevia exclusivamente sobre o destino difícil do homem soviético. É entre nós, muito especialmente, que as pessoas adoecem, morrem, se divorciam e sofrem. Só entre nós é que as pessoas se apaixonam loucamente, sem a esperança de que o seu amor seja recíproco. Só entre nós é que se recorre ao suicídio para acabar com a vida. Só entre nós é que se bebe. Unicamente na Rússia! De tal maneira que no Ocidente me publicam cada vez menos, enquanto no meu país as tiragens ultrapassam o milhão de exemplares. Por isso fiquei verdadeiramente surpreendida ao saber que uma editora heróica tinha decidido publicar este livro com este prefácio tão pouco comercial. O livro que eu escrevi sobre a minha própria vida. No qual, em pequena, canto na rua para ganhar um pedaço de pão (como Piaf) porque a nossa família não tinha nada para comer durante a guerra (como muitas famílias francesas), no qual passo por todos os estádios de desenvolvimento do ser humano (como você, caro leitor)... Um livro no qual, sem me dar conta, me torno escritora.

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