Nunca houve escritor mais biografado e autobiografado (os livros Infância, Adolescência e Juventude). Sabe-se, e interpreta-se, tudo da sua vida, desde os tenros anos em que era o Liova riova (Leão chorão), menino de grande sensibilidade que privou desde muito cedo com a morte (do pai, da avó, de uma tia tutora, de alguns irmãozinhos), passando por uma adolescência insegura e sofredora, como todas as adolescências. «Quem sou eu?» e «a busca da verdade» são talvez os itens que mais o atormentaram. Quem foi Tolstói? Já com 26 anos, escrevia no seu Diário: «Sou feio, desajeitado, pouco asseado e sem verniz mundano. Sou irritadiço, desagradável para os outros, pretensioso, intolerante e tímido como uma criança. Sou ignorante. O que sei, aprendi-o aqui e acolá, sem seguimento e, mesmo assim, tão pouco. Sou indisciplinado, indeciso, inconstante, estupidamente vaidoso e violento como todos os homens sem carácter. Sou honesto, o que significa que gosto do bem: ganhei o hábito de o estimar e, quando me afasto dele, fico descontente comigo, e volto ao bem com prazer. Mas há uma coisa que prezo mais do que o bem: é a glória. Sou tão ambicioso que, se tivesse de escolher entre a glória e a virtude, acho que escolheria a primeira.» Na juventude nunca estudou a sério. Inscreveu-se em Estudos Orientais na Universidade de Kazan, não fez os exames; o mesmo na faculdade de Direito. Mas lia muito, em russo, francês e alemão, sobretudo livros e ensaios de história e filosofia. Como todos os jovens ricos da aristocracia, teve uma fase de estúrdia, entre Tula e Moscovo, com jogos de cartas e álcool. Foi militar, fez a guerra do Cáucaso (romance Os Cossacos), esteve no cerco de Sevastópol. Subiu a Petersburgo, onde tudo acontecia, e foi protegido de Turguénev que o introduziu nos círculos literários. Detestou. Sempre foi um franco-atirador de carácter rígido e ríspido. Desde muito cedo lhe reconheceram o génio artístico, a sua capacidade única de efabular, de fazer jogar personagens e situações, de combinar uma visão épica, ampla e fluida, com o ritmo particular dos destinos individuais. Os seus romances conseguem resistir à prédica religiosa e ao discurso de comício político, caso de Anna Karénina, assim como à sua escrita apressada e sem elegância, caso de todos os seus livros. Apesar da sua frase carregada, do seu desprezo pelos sinónimos, não há nele esforço de narração, não há qualquer efeito de estilo, mas uma simplicidade excepcional. Foi pedagogo (tendo viajado de propósito pelo estrangeiro para se informar sobre os novos métodos de ensino), escreveu uma Cartilha para os filhos dos camponeses, fundou-lhes escolas livres. Em Setembro de 1862, escreve a uma parente: «Eu, velho imbecil desdentado, apaixonei-me!» Assim, aos 34 anos, casa com uma rapariga com metade da sua idade, Sófia Andréevna Behrs, a verdadeira dona da sua casa, com quem teve treze filhos. À hora da morte, recusou que ela estivesse presente, apesar de, durante toda a vida, terem partilhado os respectivos diários íntimos.
Ideias e revolução da alma. É assim que um filho de Lev Nikoláevitch Tolstói, o conde Lev Lvóvitch Tolstói, entende e resume as ideias do pai, não concordando com elas e apontando as suas consequências nefastas: «Toda a vida moderna dita civilizada se baseia na mentira e na hipocrisia. A religião, o Estado, a família, a ciência, a educação, etc… tudo isso deve ser totalmente reformado. Perante esta descoberta de Lev Tolstói, ou perante isto que ele achava ser um facto, só nos resta uma coisa: seguir os preceitos do verdadeiro cristianismo racional, isto é, viver uma verdadeira vida religiosa e espiritual, a única que pode resolver tudo e aperfeiçoar tudo por meio da revolução da alma em cada indivíduo.» Ao filho conde, conservador, assustava muito: a negação do Estado e das autoridades, a negação das leis e da Igreja, da guerra, da propriedade privada, da família tradicional, em suma, a negação de tudo sob a tutela do ideal cristão — um veneno que, para o filho, se propagava na Rússia.
Um cristão sem Igreja. Há um adjectivo que não é possível omitir quando se qualifica este escritor: cristão. O homem Tolstói e o escritor Tolstói (nem sempre em sintonia) foi um cristão que escreveu e praticou princípios anarquistas, uma coisa que vemos claramente através da sua biografia e da sua obra mas que ele não reconhecia. Assim, nos seus livros O Reino de Deus Está em Vós e O Padre Serguei, por exemplo, Lev Tolstói expõe uma filosofia bastante próxima da de Bakúnin com uma crítica ao Estado e à exploração, bem como uma denúncia do clero e da hipocrisia das Igrejas católica e ortodoxa. A ligação entre o seu cristianismo anarquista e a busca de justiça social levou-o também a defender ao longo dos ensaios e dos romances uma sociedade diferente — ou alternativa, a par da oficial — em que começou a acreditar quando foi decretada a emancipação dos servos da gleba, em 1861, mas assente em princípios não violentos. Uma das particularidades de Tolstói, como cristão e como escritor, é o violento debate íntimo, o racionalismo, o ver sempre «os dois ou os vários lados das coisas», ou seja, a sua lucidez implacável. É isso que o leva, mesmo sendo ele um não violento, a compreender os violentos, sejam militares (Lev Nikoláevitch foi militar), as cruéis autoridades do regime ou os revolucionários. Compreende-os porque, dadas as circunstâncias, eles «não podiam ser diferentes do que eram na realidade»; entende todos os violentos e vai mais longe: aceita os da última categoria, os revolucionários, em nome das « exigências morais mais altas do que as convencionais» destes. No romance Ressurreição, a grossa gota de água que impeliu a Igreja ortodoxa a excomungá-lo em 1900 e que, por assim dizer, guia estas minhas reflexões, Tolstói vê assim os revolucionários pelos olhos da personagem principal Nekhliúdov, «o homem que era dois homens, como todos nós», personagem que, segundo os exegetas tolstoianos, se inspira no irmão muito amado de Lev Nikoláevitch, Dmítri, que morreu nos braços de uma prostituta:
Desde o início do movimento revolucionário na Rússia, Nekhliúdov alimentava pelos revolucionários um sentimento de antipatia e desprezo. Repugnavam-lhe, em primeiro lugar, a crueldade e o secretismo dos métodos que eles utilizavam na luta contra o governo, sobretudo a crueldade dos assassínios que cometiam; também abominava a sua grande presunção, uma característica comum destas pessoas. Porém, quando os conheceu melhor e soube o que eles sofreram sem culpa da parte das autoridades, Nekhliúdov viu que estes revolucionários não podiam ser diferentes do que eram na realidade.
Por mais terrivelmente absurdos que fossem os sofrimentos a que ficavam sujeitos os chamados criminosos comuns, procedia-se, em relação a eles, antes e depois da condenação, a medidas de certo modo legais; ora, nos processos políticos não havia sequer esta quase legalidade […]. Agiam em relação a eles como se estivessem em estado de guerra, e eles, naturalmente, recorriam aos mesmos métodos. […]Assim ficava esclarecido para Nekhliúdov o fenómeno surpreendente [de pessoas cordatas verem]no assassínio […] um meio de autodefesa e de alcançar o objectivo supremo do bem comum e um método legítimo e justo. […] Precisavam de conferir a si mesmos um alto valor para terem a força de suportar o que suportavam. […] A diferença, em relação às outras pessoas, e a favor deles, consistia em que as exigências morais entre eles eram mais altas do que as que eram convencionais no meio das outras pessoas. Entre eles, eram considerados obrigatórios não só a moderação, a severidade de vida, a verdade, a atitude desinteressada, mas também a prontidão para sacrificarem tudo, inclusive a vida, pela causa comum. (Ressurreição, Terceira Parte, cap. 5, pp. 434-435, Editorial Presença).
É curioso: crítico violento e sarcástico do exército, da Igreja, do Estado, do imperador (diziam que Tolstói era o homem mais poderoso da Rússia, até o imperador o temia) Lev Nikoláevitch Tolstói é tido por um dos precursores da não-violência, inspirado pelo filósofo americano Henry David Thoreau e pelo profeta persa Mirzá Husayn Ali Nuri (dito «a glória de Deus»), fundador da religião unificadora baha’ie. Por seu lado, Lev Nikoláevitch inspirou não-violentos tão célebres como, por exemplo, Romain Rolland (que escreveu uma biografia sua) e Mahatma Gandi, com quem o escritor manteve correspondência até ao fim da sua vida. Uma coisa é certa: Lev Tolstói sempre tentou aplicar estes princípios à sua vida, vivendo a velhice entre a agricultura e a educação dos camponeses de maneira totalmente autónoma do Estado ou da economia. Foi um homem, e um escritor, que envolveu em métodos realistas e numa escrita realista o seu ideal, e o ideal, como formula concisamente na Sonata de Kreutzer, «não é ideal apenas porque não se pode atingir». Tentou viver cristãmente e morrer cristãmente. Na velhice avançada afastou-se dos seus e, como um verdadeiro peregrino russo, fugiu do mundo e, cumprindo o ritual vagabundo, quis morrer «sozinho com Deus».
A morte. A par da «busca da verdade», é a morte que impera em Tolstói. As suas ideias recorrentes: «Mas que verdade pode haver, se há a morte?», «Quem sou eu? Por que sou? É tempo de acordar, ou seja, de morrer», «Livre desta personalidade que impede a adesão da alma ao grande Todo». Nos livros de Tolstói encontramos uma enorme quantidade de descrições pormenorizadas de mortes: o príncipe Andrei em Guerra e Paz, Anna Karénina, etc. O herói do seu conto Apontamentos de um Louco reflecte com uma amargura impressionante: «Não há nada na vida, há só a morte, e essa não devia haver».
Claro que não devia, e mesmo assim ela, a morte, chegou também para Tolstói. Ivan Búnin dedicou a esta morte um livro inteiro, Libertação de Tolstói. É claro que o assunto do livro não é tanto (nem tão-pouco) sobre o final físico de Tolstói; é muito mais sobre a filosofia do grande escritor, sobre a sua relação com a morte, as suas procuras do sentido da vida. Mas a libertação física do caminho terrestre de Tolstói, da sua existência terrena, começou assim: no dia 28 de Outubro de 1909, cansado das discórdias familiares, às escondidas da maioria dos seus (sobretudo da mulher Sófia Andréevna), fugiu da sua propriedade em Iásnaia Poliana. Com ele ia a filha Aleksandra Lvóvna.
No dia 1 de Novembro, esta telegrafou ao secretário de Tolstói, Tchertkov: «Ontem descemos até Astapovo, um calor terrível, tonturas, de manhã a temperatura estava normal, mas agora outra vez de arrepiar. Impensável viajar.»
Nessa manhã, deitado na cama do funcionário da estação ferroviária, Tolstói ditou à filha o seguinte para o livrinho de notas: «Deus é o Todo ilimitado, o homem é apenas uma manifestação limitada de Deus», e passado algum tempo mandou-a acrescentar: «Ou antes assim: Deus é aquele Todo ilimitado, do qual o homem se reconhece numa parte limitada. Na verdade só Deus existe. O homem é uma manifestação sua na substância, no tempo e no espaço. Quanto mais a manifestação de Deus no homem (vida) se junta às manifestações (de vida) de outras substâncias, mais ele existe. A ligação desta sua vida com a vida de outras substâncias concretiza-se no amor…»
Ainda, como descreve Búnin: «Meus queridos filhos, Tânia e Serioja! Espero que não me exprobreis por não vos ter convidado, mas esse convite, sem a mãe, ia ser uma grande amargura para ela, assim como para os vossos outros irmãos. […] Também queria acrescentar para ti, Serioja, o conselho de pensares na tua vida, sobre quem tu és, o que tu és, qual é o sentido da existência humana e como deve vivê-la uma pessoa sensata. Aqueles pontos de vista do darwinismo que tu absorveste, da evolução e da luta pela existência não te vão explicar o sentido da tua vida e não vão guiar as tuas acções; e a vida, sem a explicação do seu significado e sentido e sem uma constante orientação dela decorrente, é uma vida lamentável.» Portanto, insuficiência do darwinismo, mas, logo a seguir, a recusa de receber o mais alto prelado da Igreja ortodoxa, dizendo sem parar de chorar: «E os mujiques, os mujiques como morrem!»
A partir das 11 começou a delirar e assim continuou no dia seguinte. Novamente pediu que apontassem o que ele ditava, mas dizia palavras desconexas e incompreensíveis. A sua obsessão: pensar até ao fim, compreender. Procurar, procurar sempre.
— Não penses — disse-lhe a filha Aleksandra Lvóvna.
— Ah, não pensar… É preciso, é preciso pensar! — E assim passava o dia inteiro a tentar dizer qualquer coisa, divagava e sofria. À noite começou de novo o delírio, e ele implorava por compreender o seu pensamento, que o ajudassem.
Na manhã de 6 de Novembro, depois da chegada dos médicos de Moscovo, começaram a azular-lhe os lábios, o nariz e as mãos, a cara emagreceu-lhe de súbito, ou melhor, mirrou.
— Queres que te ajeite a almofada? — perguntou Aleksandra Lvóvna.
— Não. Só aconselho que se lembrem de uma coisa, é que no mundo há muitas pessoas para além do Lev Tolstói, e vocês só olham para o Lev. Custa-me a respirar — disse ele depois numa voz rouca e pesada.
Chamou o filho: — Serioja!
Quando este se aproximou, disse-lhe: — A verdade… Eu gosto de muito… como eles…
Foram as suas últimas palavras. (Outrora apontara no seu diário: «As palavras de um moribundo são especialmente significativas.»)
Na manhã de 7 de Novembro, às 6 horas e 5 minutos, Tolstói faleceu discretamente.
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