12.05.2010

É domingo, cristãos. Sejamos mais sisudos e, provavelmente, menos verdadeiros

Pode sempre ler-se Tolstói, mas falar dele e da sua obra fica muito limitado se não lermos este livrinho: Confissão, editora alfabeto, Lisboa, 2010 (acaba de sair). Porque é um livro tardio (1884) e se fundamenta no percurso espiritual do autor. É uma espécie de livro-súmula da sua vida e obra.

Grande parte da obra de Tolstói é, mais do que autobiográfica, confessional. Confessional no sentido lato e também no sentido restrito – religioso e sacramental. Salvas as devidas diferenças na abordagem filosófica e teológica, pode dizer-se que Tolstói segue a linha da confissão (a confissão como veículo literário e filosófico de ruptura) iniciada na cultura ocidental por Santo Agostinho, sendo uma das figuras tutelares (juntamente com Rousseau, Nietzsche, Kirkegaard…) deste estilo confessional, mesmo nos romances mais livres e ficcionados.
Confissão é, por isso, o livro-súmula do percurso não só espiritual mas também filosófico de Lev Tolstói. Mostra como Tolstói não procurava valores na história, nem na sua própria cultura, nem unicamente na religião, mas na experiência própria do indivíduo, na «revolução da alma» de cada um, de acordo com as palavras de um seu filho e objector. Mostra com clareza que o seu paradigma do homem comporta várias culturas. As parábolas do seu sermão Confissão não são as dos Evangelhos, mas as do budismo. O seu universalismo abrange tanto o Oriente como o Ocidente. A influência do seu pensamento na ideologia da «não resistência» de Gandhi na Índia é testemunho deste universalismo. Esta síntese tolstoiana, sendo confessional, opõe-se, no fundo, à tradição confessional agostiniana. Aqui, Tolstói faz uma interpretação muito pessoal da religião, começando por colocar o tema religioso como um problema racional, para afirmar o sentido religioso da vida. Surge aqui como um pensador pós-cristão. Tolstói é moderno: ao identificar implicitamente a confissão com o perdão cristão, transporta-nos para o espírito global do mundo moderno, com a sobrevivência de uma cristianização virtual que não tem necessidade da Igreja cristã.
Com as interrogações que assombram este livro: «Que fazer?», «Viver para quê?», interrogações que o levaram à beira do suicídio, que o atormentaram porque a sua vida não tinha sentido; com a busca deste sentido, com estas questões existenciais repetitivas, Tolstói queria abranger a condição humana, procurar um sentido para a vida e, sobretudo, para a morte. Com todo o rigor da sua criatividade literária, transformou a ideia da morte numa poderosa interrogação de si mesmo através do apelo ao outro. A sua filosofia de vida e os respectivos paradoxos, assim como a sua arte de os exprimir, estão ligados com esta busca.

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