12.10.2010

Ghost in translation - 4


Acabei finalmente Anna Karénine de Léon Tolstói traduit directement du russe. Nunca vi francês mais correcto, parabéns, cher collègue. Parece-me que monsieur melhorou sensivelmente o texto do conde, interpretou e recriou com brilho as grosseiras metáforas de caça do russo e os desnecessários e deselegantes pormenores históricos e locais de uma Rússia nada esmerada. Elevou a uma arte literária muito fina as partes em que o conde faz apenas sermão de pope desavindo. Já pode o monsieur tirar o alvará de escritor. Talvez possa agora, se ainda for vivo, porque o meu livro em francês é antigo, melhorar para nós e tornar menos bruto o seguinte provérbio russo: Para falar bonito, nem o próprio pai se poupa. Não voltarei aos franceses, a não ser a Pascal Quignard, e a Gonçalo M. Tavares (M. de Müller?) que ganhou lá um prémio a todos os títulos grande. Mas mais tarde. A minha autobiografia prossegue com a descrição do meu recanto de trabalho fantasmagórico (o recanto e o trabalho).
Estou sentado várias horas por dia, em todas as quatro estações, diante de um computador importátil (embora tenha um pequenino bem cool para levar para a praia e para o Central Park), grande, de torre, ronronante e por vezes farfalhante, sem net, onde jogo ao solitário spyder, traduzo e, vezes sem conta, também trabalho. Tenho a companhia permanente de uma mosca – gorda, negra, lenta, de raça esgalgada, nada esvoaçante – um díptero do género-tipo Musca, se querem saber. Seria ridículo e infantil dar-lhe um nome. Gosta de se colocar no canto superior direito, entre o fim de “Microsoft Word utilização não comercial” e o fatídico X que manda tudo à vida – ou à morte. O meu bom relacionamento com moscas data de há muito. Mesmo na Suíça asséptica, onde em princípio não há moscas, trabalhei na juventude em estábulos para pagar a minha tese de mestrado sobre o aforismo gravídico em quatro autoras lésbicas e as moscas ajudaram-me a viver: por cada mosca que caçava no estábulo, o patrão pagava-me um franco suíço. Pois é como disse: a minha mosca, durante longos anos, tem sobrevivido aos invernos rigorosos da Margem Sul numa casa sem aquecimento, e tem-me feito muita companhia. Num dia frio, chuvoso, ventoso, cortado pelos macacos dos relâmpagos apenas incomodativos e nada assustadores (ontem), estava eu a dormitar sobre o teclado num fim de tarde sinistro e, quando acordo, vejo que… a mosca estava confortavelmente metida dentro do monitor, em cima do X da vida e da morte, esborratando-o. A minha reacção: - Ah, oh… mas quê?... Ma… Ma… Mas… Ah, Meu Deus! Fo… fo… fo… da-se mas que é isto? – E também: - Alguém saberá qual é a cozedura cósmica donde emerges?
A comoção não me deixa continuar.

6 comentários:

Anónimo disse...

escreves bem, pá. gostei de te ler.

Anónimo disse...

Good moaning! It is I, Michelle of The Resistance! I am in disguise because I am shy. Please read very carefully, I shall say this only thrice: if you keep writing like ziz, ziz blog will never be at the flies. But when will Herr Müller come? I am impatient.

Anónimo disse...

"at ze flies". Sorry, my Fronch cod be butter.
I embrace you,
Michelle of the Resistance

Filipe Guerra disse...

Michelle, it is I, Leclerc.

Anónimo disse...

I know, I made a big lettuce out of ziz, butt I zizn't remember very well ze zifferent characters in ze story. I shall now go preach to another parrish, in Fronch as Zie is spoken.

Anónimo disse...

[taking off the glasses] Ziz you recognize me?

contacto: