12.12.2010

Ghost in translation - 5

Agradecia que fizessem por encontrar qualquer sentido filosófico no que vou dizer: a minha vida é uma divagação à volta de coisas. A minha autobiografia oficial também. Os outros só contam em mim, não entro neles. O que os outros pensam e dizem de mim só conta na minha interpretação do que pensam e dizem de mim. Não há cá osmoses nem concrescências (como gosto desta palavra siamesa). A nossa verdade é sermos únicos, no social somos formatação. No social reinam fórmulas como bom/mau, admiração/inveja. Somos o que somos, o social aliena-nos, mente-nos sempre. E se o social me tem inveja é porque sou único (o único é bom e mau) --- palavras da minha avó --- e feliz (palavras da avó de José Mourinho). Eu e José Mourinho temos em comum citar as nossas avós.
A mosca desapareceu mais uma vez. Os ícones do som e do media player também abandonaram a sua barra de trabalho. Chamei-os, vieram logo (os ícones), mas estão a ir demasiadas vezes à casa de banho (repreensão oral). A mosca só apareceu quando lhe deu na bolha. Posso fazer alguma coisa? No fundo, uma mosca a viver no plasma, no meio hostil das entranhas de um monitor, nesta placenta demoníaca, a viver aqui o seu quotidiano, com calma, descontraída, e a olhar para mim com ironia – no fundo é mais do que grave, é assustador. Se a mosca falasse era pior, poderia fazer-me a pergunta cruel: “como viveste até à velhice com a feliz ilusão de que eras um homem decente?”, uma pergunta que ninguém, homem ou mosca, faz a si próprio, mas gosta de fazer aos outros. Também, se a pergunta me fosse feita, o que valem as palavras de uma mosca? Um antigo vizinho meu era taxativo: um bom ponta-de-lança é um bom ponta-de-lança, um bom carpinteiro é um bom carpinteiro, um homem decente é um homem decente, um bom defesa esquerdo… Não, amigo, um homem decente apenas se considera um homem decente, e anda nisso até ao fim da vida. Um bom académico é um erudito? E como este texto ameaça tornar-se chato, desfrutemos de preferência dos amores do médico cirurgião Pável Alekséevitch com a sua bela Elena, bela Elena (e dizer que me comove a epanástrofe!) que posteriormente seria atingida pela doença de Alzheimer:
«[…]pôr o dedo indicador na covinha sob o novelo macio de cabelo e passar-lho pelo pescoço abaixo, fazê-lo deslizar ao longo da estreita coluna vertebral dentro do sulco regular das costas, chegando ao sacro ligeiramente saliente – Os sacrum, osso sacro… A propósito, por que é sacro, precisamente este osso? E mais abaixo, afastando os Musculus glutaeus maximus apertados, passando pelo botão ternamente enrugado, deslizar para a prega secreta do Perineum, abrir os Labium majus um pouco moles, os Labium minor tímidos, imobilizar-se no Vestibulum vaginae, tocar na mucosa sedosa e húmida – ele que conhecia tão bem toda essa anatomia, morfologia, histologia –, acariciar com o dedo o alongado caroço do Corpus clitoridis – uma lacuna, um vazio, o coração a palpitar… adiante, adiante – atravessar o mato ralo de pêlos, sob os quais se apalpa a curva do Mons pubis, passar por cima da cicatriz cosmética, de dupla costura – não sabia que se esmerava para si próprio quando a coseu –, subir até ao umbigo pequeno, numa cavidade pouco funda, passar entre os seios lançados para os lados, aguçados junto aos mamilos, e parar na depressão sob a clavícula, de modo a que as Clavicula e as suas chavetas se lhe estendam debaixo da mão…» (Extracto em pré-publicação de O Caso Kukótski, de Liudmila Ulítskaia, Relógio d’Água).

Sem comentários:

contacto: