10.28.2011

A ver se alguém tem paciência para ler isto

Livro: Vida e Destino
Autor: Vassili Grossman
Editora: D. Quixote
Nº de páginas: 855


Este livro, que passou pelas vicissitudes tipicamente soviéticas na sua aprovação, tentativa de edição e proibição, teve um destino que foi ainda mais longe. Entregue ao editor (a revista Znamia) em 1961, passou de imediato para as mãos do KGB e teve o privilégio não só de ser proibido como o de desaparecer da face da Terra durante vinte anos. Conhece-se outro caso semelhante, o de Arquipélago Gulag, de Soljenítsin. O manuscrito de Vida e Destino só apareceu na Suíça no ano 80, graças a ilustres dissidentes soviéticos, entre os quais o físico Andrei Sákharov, tendo sido então publicado a partir das duas versões (ambas incompletas) do manuscrito. Na Rússia foi preciso esperar pela glasnost para a publicação do romance em 1988. A nada disto assistiu já Vassíli Grossman, uma vez que faleceu de cancro de rim três anos depois de ter entregue o seu manuscrito e de o ver apreendido pelas autoridades.
           Vida e Destino é uma obra magistral, um imenso fresco à semelhança de Guerra e Paz de Tolstói. Percorre a sociedade soviética sob a mão de ferro de Stálin, assim como a sua evolução a partir da Revolução de 1917 na Rússia. Enquadra-se sobretudo, temporalmente, nos meses de combates defensivos em Stalingrado e depois na contra-ofensiva vitoriosa soviética após o cerco e a tomada da cidade.
O desencantamento, a reviravolta na percepção das coisas levou à evolução política e espiritual de Vassíli Grossman de escritor soviético bem integrado para um dos mais lúcidos desmascaradores do sistema totalitário compressor e hipócrita instalado no país, e deve-se sem dúvida à experiência que viveu, como correspondente de guerra, no segundo conflito mundial. Todo o livro aponta para isso. Profundo conhecedor de ambos os lados do conflito, começou a notar a coincidência da visão do mundo entre nazis e stalinistas. No livro, é particularmente significativo o diálogo (quase monólogo) centrado no oficial SS da Gestapo, Liss e Mostovskói, velho comunista prisioneiro dos alemães. Extractos :
Os dias passavam, mas Mostovskói nunca mais era chamado para o interrogatório. [Até que apareceu Liss]:
 — Quando nos olhamos na cara, um ao outro, olhamos não só para uma cara odiosa, mas também para o espelho. Nisto consiste a tragédia da época. Será que não estais a reconher-vos em nós, a vós próprios, à vossa vontade? Será que para vós o mundo não é a vossa vontade, será que é possível fazer-vos hesitar ou parar? […]Assestamos golpes ao vosso exército, mas é a nós que os nossos golpes atingem. Os nossos tanques romperam não só a vossa fronteira, mas também a nossa, as lagartas dos nossos tanques atropelam o nacional-socialismo. É terrível, é como um suicídio em sonho. Pode acabar tragicamente para nós. Está a entender? Se vencermos! Nós, vencedores, ficaremos sem vós, sozinhos contra o mundo alheio que nos odeia.
[…]
— Dois pólos! Está certo, não há dúvida! Se não fosse uma verdade absoluta, hoje não haveria esta terrível guerra. Somos os vossos inimigos mortais, sim, sim. Mas a nossa vitória é a vossa vitória. Está a entender? Mas se vocês saírem vencedores, nós perecemos, mas ao mesmo tempo vamos viver na vossa vitória. É um paradoxo: ao perdermos a guerra, ganharemos a guerra, vamos desenvolver-nos noutra forma, mas na mesma essência.
[…]
— Pense! Quem está nos nossos campos quando não há guerra, quando não há prisioneiros de guerra? Nos nossos campos de detenção, nos tempos de paz, estão os inimigos do partido, os inimigos do povo. Nos vossos campos estão também pessoas suas conhecidas. E se, no tempo de acalmia, de paz, a nossa Direcção de Segurança Imperial incluir no sistema germânico os vossos presos, não os deixaremos sair em liberdade, o vosso contingente é o nosso contingente.
[…]
— Os comunistas alemães que metemos no campo de concentração também foram encarcerados por vós no ano trinta e sete. Ejov encarcerou-os, e o Reichsführer Himmler também…
[…]
— […]O abismo não existe! Foi inventado. Somos uma forma da mesma essência: o Estado partidário. […] Não vejo causa nenhuma para a nossa hostilidade!
[…]
— Oh, não é idiota, tanto o senhor como eu temos de compreender: não é nos campos de batalha que o futuro será decidido. Conheceu Lénin pessoalmente. Ele criou o partido de novo tipo. Foi o primeiro a compreender que apenas o partido e o seu líder exprimem o impulso da nação, e pôs fim à Assembleia Constituinte. Porém, como o físico Maxwell que, destruindo a mecânica de Newton, pensava que estava a consolidá-la, Lénin, criando o grande nacionalismo do século vinte, também se considerava o criador da Internacional. Depois, Stálin ensinou-nos muita coisa. Para o socialismo num único país é preciso liquidar a liberdade camponesa de semear e vender, e Stálin não hesitou: exterminou milhões de camponeses. O nosso Hitler viu que há um grande obstáculo para o movimento alemão nacional e socialista: o judaísmo. E resolveu exterminar milhões de judeus.
Vassíli Grossman não podia também deixar de notar, durante a guerra e na sequência dela, o abandono, por parte dos ideólogos e da nomenklatura comunistas, do internacionalismo e da amizade entre os povos (mera figura de retórica) e a instalação do culto de um nacionalismo exacerbado logicamente ligado ao anti-semitismo (veja-se a personagem Strum, o cientista judeu, e as suas discussões filosóficas com os amigos). Este facto levanta também em Vassíli Grossman outras questões. Será ele, nomeadamente, um dos primeiros jornalistas a entrar no campo de Treblinka. E saberá da morte na Ucrânia de sua mãe, vítima da repressão nazi contra os judeus, apenas aquando do regresso à pátria das tropas soviéticas, depois da derrota dos nazis e da descoberta do «genocídio à bala» perpetrado pelos nazis em 1941 e 1942.
Vida e Destino não só denuncia a violência nazi mas detecta também, e denuncia, a institucionalização progressiva do nacionalismo, chauvinismo e anti-semitismo pelo regime soviético stalinista: «Decidia-se o destino dos prisioneiros de guerra alemães que iam para a Sibéria. Decidia-se o destino dos prisioneiros de guerra soviéticos nos campos nazis, para quem a vontade de Stálin destacara, para depois da libertação, um lugar ao lado dos prisioneiros alemães na Sibéria. Decidia-se o destino dos calmuques e dos tártaros da Crimeia, dos balcares e dos tchetchenos, levados, por vontade de Stálin, para a Sibéria e para o Cazaquestão, perdendo o direito à memória da sua história, a dar ensino aos filhos na língua materna. […] Decidia-se o destino dos judeus resgatados pelo Exército Soviético, para que, no décimo aniversário da vitória do povo em Stalinegrado, Stálin levantasse por cima das suas cabeças a espada do extermínio arrancada das mãos de Hitler.»
Este livro apresenta-se, assim, como um testamento intelectual e literário, um testemunho muito sincero, em forma de ficção, sobre a União Soviética e uma visão terrivelmente lúcida do percurso histórico a partir da revolução de 1917.
Vida e Destino é a segunda parte de uma epopeia iniciada com Por Uma Justa Causa (onde a reviravolta completa da percepção de Vassíli Grossman ainda não tinha acontecido) mas pode ler-se isoladamente sem quaisquer problemas. A sua acção inicia-se em Outubro de 1942 e estender-se-á por vários meses, seguindo a contra-ofensiva soviética iniciada em Stalinegrado até à chegada do Exército Vermelho à Ucrânia, nos princípios de 1943.
         Se o centro do romance é a batalha de Stalinegrado, porque é ela que dita a «marcha dos acontecimentos», o seu tempo e memória são muito mais vastos e os seus personagens espalham-se por toda a Rússia, têm actividades e visões da vida muito diferentes. Esta composição caleidoscópica, à maneira de Tolstói, aliás várias vezes citado pela boca da personagem Strum, principalmente, confere ao livro um carácter global e exaustivo, quer em termos históricos, quer em termos psicológicos, a todos os níveis de leitura.
O olhar do autor sobre as personagens é profundamente humanista e variado, e nunca sectário. Aqui, os homens são partículas no seio dos sistemas sociais de massas, e mostra-se a tendência dos indivíduos em aceitarem o sistema no caso de ocuparem nele o seu lugar. Mas também a importância de as pessoas terem capacidade de resistir, de manter a sua dignidade humana, a sua liberdade interior. O físico Strum cai em desgraça perante os chefes administrativos, os burocratas da nomenklatura e do partido e os próprios colegas do instituto tolhidos pelo medo ambiente e institucional, e resiste, pronto a perder tudo --- trabalho, vida confortável, liberdade. Um telefonema pessoal de Stálin levanta-o da lama até às alturas de uma pessoa privilegiada, de intocável a brâmane --- e o recente lutador torna-se submisso. A arma do poder totalitário não é apenas a violência que leva ao extermínio físico de seres humanos, mas antes de mais os métodos de transformar pessoas em «parafusos» da máquina estatal, conformistas e participantes obedientes do regime.
A forma literária de Vassíli Grossman é muito forte, o realismo do seu estilo não está contaminado pela propaganda nem pela visão optimista oficial da nova vida, é antes um realismo clássico, onde é imitada a estrutura global de Tolstói em Guerra e Paz, onde abundam os debates filosóficos como em Demónios ou Irmãos Karamázov de Dostoiévski. É interessante a análise de Tzevetan Todorov à obra de Grossman e particularmente a Vida e Destino: o autor de quem Grossman se sentiria mais próximo, «pela sua própria confissão, é Tchékhov, porque é ele que traz à literatura russa o novo humanismo centrado nas ideias de liberdade e de bondade». Uma coisa é certa, o realismo de Vassíli Grossman é um realismo implacável. Os «novos tempos», tal como esfolaram a revolução para lhe aproveitarem a pele, são esfolados e escalpelizados pela pena corajosa e lúcida do autor. A União Soviética é vista pelas personagens como um verdadeiro monstro burocrático com regras tão arbitrárias e flutuantes que, de um momento para o outro, podem recompensar ou castigar o cidadão, com o único objectivo, ao que parece, de criar na população em geral um sentimento difuso de medo e angústia. A este sentimento aliam-se, indissociavelmente, as instituições de segurança e repressão, os campos correccionais, os processos pré-formatados (praticamente sem direito à defesa por parte do acusado), a denúncia institucionalizada que daí advém. Até em plena guerra, onde todos estavam do mesmo lado, até em plena batalha de Stalinegrado, o medo de falar e agir e a denúncia e a purga permanentes são moeda corrente a que ninguém escapa, nem os próprios denunciantes. Este medo culmina na pessoa de Stálin, «escravo do tempo e das circunstâncias, resignado e obediente servo do dia de hoje». No romance de Vassíli Grossman é também muito bem contado o fenómeno psicológico da assunção da culpa por quem não é claramente culpado de nada. Krímov, personagem chave de Vida e Destino, um homem férreo e sem dúvidas, foi parar, como tantos militantes destacados do partido, às masmorras da Lubianka. Sabe-se inocente mas, na evolução dos interrogatórios, começa a questionar a sua «inocência». E nem o amor o salva da culpa mística com que o partido impregna toda a gente. «Depois dos interrogatórios, Krímov ficava deitado no catre, gemia, pensava, conversava com Katzenelbogen. Agora já não pareciam inverosímeis a Krímov as loucas confissões de Bukhárin e de Ríkov, de Kámenev e de Zinóviev, o processo dos trotskistas, dos centros direitistas e esquerdistas […]»
         Nem só da II Guerra Mundial trata o livro. Através da formidável galeria de personagens de Vida e Destino, Vassíli Grossman leva-nos a descobrir os julgamentos dos soviéticos da sua época sobre a história do país após o advento dos bolcheviques, numa visão de conjunto multifacetada e bem informada: Vassíli Grossman questiona  a utilização violenta e maciça por parte dos sovietes, em 1917, da sua vitória na revolução para assumirem um poder absoluto sobre as instituições russas, em detrimento da formação de uma Assembleia Constituinte para a Rússia; com as evocações frequentes sobre o esbulho e a eliminação dos kulaks nos anos vinte questiona a política agrária; com as purgas maciças de finais dos anos trinta condena abertamente o sistema securitário. A vitória absoluta e total do regime surge em Vida e Destino como a vitória do absurdo e do arbitrário sobre o humanismo do ideal comunista. Como já se viu, as críticas formuladas através do livro ao sistema social assim criado e desenvolvido incidem muito sobre a viragem do regime soviético do internacionalismo para o nacionalismo, que terá consequências muito concretas: o ostracismo institucionalizado de certos sectores da sociedade passará ao longo dos anos a um racismo institucionalizado incidindo sobre etnias e religiões consideradas nocivas. E é este factor que, aos olhos de Grossman, marcará a proximidade dos regimes hitleriano e stalinista, em tudo o que eles têm de implacável nas suas pretensões ao bem absoluto para os seus abstractos homens «eleitos»: alemães puros de um lado, operários puros do outro. Mais uma vez, é a personagem mais pessoal do seu romance, Strum, quem debate estes pontos de vista.
Para terminar, apontemos a visão filosófica expressa no livro e personificada nas ideias humanistas e aparentemente ingénuas de um tal Ikônnikov, eremita místico depois executado pelos alemães e um dos prisioneiros russos juntamente com o bolchevique Mostovskói.  Em certo sentido, esta visão do mundo corresponde a um ponto de contacto entre as filosofias ocidental e oriental; rejeita violentamente a possibilidade de um grande bem social universal assim como as pretensões dos sistemas sociais de massas, valorizando a dualidade da condição humana, que vê sistematicamente surgir o bem do mal e o mal do bem.
No fundo, porém, só a leitura integral deste livro nos mostrará o escritor e o homem, Vassíli Grossman, capaz de pôr em questão a totalidade do seu sistema de pensamento assim como as doxas do seu tempo, tornando-se assim um dos testemunhos mais lúcidos e corajosos da história profunda (aquela que não nos pode ser transmitida pelos livros de história) do século XX.

4 comentários:

Morgada de V. disse...

Este blogue teve um destino que foi ainda mais longe. Entregue ao autor deste blogue, teve o privilégio não só de não ser actualizado durante quatro meses, como de desaparecer da face da Terra durante 16 semanas. Conhecem-se outros casos semelhantes, mas poucos regressos nos dariam tanta satisfação, pese embora as letras negras em fundo cinza serem de facto de molde a fazer perder a paciência aos leitores mais empenhados. Welcome back.

Sun Iou Miou disse...

Li o Vida e Destino (na boa tradução de Marta Rebón para espanhol, que me ofereceram) e surpreendeu-me: fez-me passar horas de leitura intensa, aprender mais alguma coisa, viver um pouco menos estúpida.

E já agora, GAF, viva, pelo regresso.

Anónimo disse...

Morgada de V., as letras negras em fundo cinza não são da minha responsabilidade mas sim dos escaninhos misteriosos do editing ou lá que é isso da merda do blogue.
Sun, é um livro muito forte, é verdade
GAF

Anónimo disse...

Alguém sabe quem o traduziu? Obrigado.

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