Autor: Vassili Grossman
Editora: D. Quixote
Nº de páginas: 855
Este livro, que passou pelas
vicissitudes tipicamente soviéticas na sua aprovação, tentativa de edição e
proibição, teve um destino que foi ainda mais longe. Entregue ao editor (a
revista Znamia) em 1961, passou de
imediato para as mãos do KGB e teve o privilégio não só de ser proibido como o
de desaparecer da face da Terra durante vinte anos. Conhece-se outro caso
semelhante, o de Arquipélago Gulag,
de Soljenítsin. O manuscrito de Vida e
Destino só apareceu na Suíça no ano 80, graças a ilustres dissidentes
soviéticos, entre os quais o físico Andrei Sákharov, tendo sido então publicado
a partir das duas versões (ambas incompletas) do manuscrito. Na Rússia foi
preciso esperar pela glasnost para a
publicação do romance em 1988. A nada disto assistiu já Vassíli Grossman, uma
vez que faleceu de cancro de rim três anos depois de ter entregue o seu
manuscrito e de o ver apreendido pelas autoridades.
Vida e Destino é uma obra magistral, um imenso fresco à semelhança de Guerra e Paz de Tolstói. Percorre a sociedade soviética sob a mão de ferro de Stálin, assim como a sua evolução a partir da Revolução de 1917 na Rússia. Enquadra-se sobretudo, temporalmente, nos meses de combates defensivos em Stalingrado e depois na contra-ofensiva vitoriosa soviética após o cerco e a tomada da cidade.
Vida e Destino é uma obra magistral, um imenso fresco à semelhança de Guerra e Paz de Tolstói. Percorre a sociedade soviética sob a mão de ferro de Stálin, assim como a sua evolução a partir da Revolução de 1917 na Rússia. Enquadra-se sobretudo, temporalmente, nos meses de combates defensivos em Stalingrado e depois na contra-ofensiva vitoriosa soviética após o cerco e a tomada da cidade.
O desencantamento,
a reviravolta na percepção das coisas levou à evolução política e espiritual de Vassíli Grossman de escritor
soviético bem integrado para um dos mais lúcidos desmascaradores do sistema
totalitário compressor e hipócrita instalado no país, e deve-se sem dúvida à
experiência que viveu, como correspondente de guerra, no segundo conflito
mundial. Todo o livro aponta para isso. Profundo conhecedor de ambos os lados
do conflito, começou a notar a coincidência da visão do mundo entre nazis e
stalinistas. No livro, é particularmente significativo o diálogo (quase
monólogo) centrado no oficial SS da Gestapo, Liss e Mostovskói, velho comunista
prisioneiro dos alemães. Extractos :
Os dias passavam, mas Mostovskói nunca mais era chamado para o
interrogatório. [Até que apareceu Liss]:
— Quando nos olhamos na cara, um ao
outro, olhamos não só para uma cara odiosa, mas também para o espelho. Nisto
consiste a tragédia da época. Será que não estais a reconher-vos em nós, a vós
próprios, à vossa vontade? Será que para vós o mundo não é a vossa vontade,
será que é possível fazer-vos hesitar ou parar? […]Assestamos golpes ao vosso
exército, mas é a nós que os nossos golpes atingem. Os nossos tanques romperam
não só a vossa fronteira, mas também a nossa, as lagartas dos nossos tanques
atropelam o nacional-socialismo. É terrível, é como um suicídio em sonho. Pode
acabar tragicamente para nós. Está a entender? Se vencermos! Nós, vencedores,
ficaremos sem vós, sozinhos contra o mundo alheio que nos odeia.
[…]
— Dois pólos! Está certo, não há dúvida! Se não fosse uma verdade
absoluta, hoje não haveria esta terrível guerra. Somos os vossos inimigos
mortais, sim, sim. Mas a nossa vitória é a vossa vitória. Está a entender? Mas
se vocês saírem vencedores, nós perecemos, mas ao mesmo tempo vamos viver na
vossa vitória. É um paradoxo: ao perdermos a guerra, ganharemos a guerra, vamos
desenvolver-nos noutra forma, mas na mesma essência.
[…]
— Pense! Quem está nos nossos campos quando não há guerra, quando não há
prisioneiros de guerra? Nos nossos campos de detenção, nos tempos de paz, estão
os inimigos do partido, os inimigos do povo. Nos vossos campos estão também
pessoas suas conhecidas. E se, no tempo de acalmia, de paz, a nossa Direcção de
Segurança Imperial incluir no sistema germânico os vossos presos, não os
deixaremos sair em liberdade, o vosso contingente é o nosso contingente.
[…]
— Os comunistas alemães que metemos no campo de concentração também foram
encarcerados por vós no ano trinta e sete. Ejov encarcerou-os, e o Reichsführer
Himmler também…
[…]
— […]O abismo não existe! Foi inventado. Somos uma forma da mesma
essência: o Estado partidário. […] Não vejo causa nenhuma para a nossa
hostilidade!
[…]
— Oh, não é idiota, tanto o senhor como eu temos de compreender: não é nos
campos de batalha que o futuro será decidido. Conheceu Lénin pessoalmente. Ele
criou o partido de novo tipo. Foi o primeiro a compreender que apenas o partido
e o seu líder exprimem o impulso da nação, e pôs fim à Assembleia Constituinte.
Porém, como o físico Maxwell que, destruindo a mecânica de Newton, pensava que
estava a consolidá-la, Lénin, criando o grande nacionalismo do século vinte,
também se considerava o criador da Internacional. Depois, Stálin ensinou-nos
muita coisa. Para o socialismo num único país é preciso liquidar a liberdade
camponesa de semear e vender, e Stálin não hesitou: exterminou milhões de
camponeses. O nosso Hitler viu que há um grande obstáculo para o movimento
alemão nacional e socialista: o judaísmo. E resolveu exterminar milhões de
judeus.
Vassíli Grossman
não podia também deixar de notar, durante a guerra e na sequência dela, o
abandono, por parte dos ideólogos e da nomenklatura
comunistas, do internacionalismo e da amizade entre os povos (mera figura de retórica)
e a instalação do culto de um nacionalismo exacerbado logicamente ligado ao
anti-semitismo (veja-se a personagem Strum, o cientista judeu, e as suas
discussões filosóficas com os amigos). Este facto levanta também em Vassíli
Grossman outras questões. Será ele, nomeadamente, um dos primeiros jornalistas
a entrar no campo de Treblinka. E saberá da morte na Ucrânia de sua mãe, vítima
da repressão nazi contra os judeus, apenas aquando do regresso à pátria das
tropas soviéticas, depois da derrota dos nazis e da descoberta do «genocídio à
bala» perpetrado pelos nazis em 1941 e 1942.
Vida e Destino não só denuncia a
violência nazi mas detecta também, e denuncia, a institucionalização
progressiva do nacionalismo, chauvinismo e anti-semitismo pelo regime soviético
stalinista: «Decidia-se
o destino dos prisioneiros de guerra alemães que iam para a Sibéria. Decidia-se
o destino dos prisioneiros de guerra soviéticos nos campos nazis, para quem a
vontade de Stálin destacara, para depois da libertação, um lugar ao lado dos
prisioneiros alemães na Sibéria. Decidia-se o destino dos calmuques e dos
tártaros da Crimeia, dos balcares e dos tchetchenos, levados, por vontade de
Stálin, para a Sibéria e para o Cazaquestão, perdendo o direito à memória da
sua história, a dar ensino aos filhos na língua materna. […] Decidia-se o
destino dos judeus resgatados pelo Exército Soviético, para que, no décimo
aniversário da vitória do povo em Stalinegrado, Stálin levantasse por cima das
suas cabeças a espada do extermínio arrancada das mãos de Hitler.»
Este livro
apresenta-se, assim, como um testamento intelectual
e literário, um testemunho muito sincero, em forma de ficção, sobre a União
Soviética e uma visão terrivelmente lúcida do percurso histórico a partir da
revolução de 1917.
Vida e Destino é a segunda parte
de uma epopeia iniciada com Por Uma Justa
Causa (onde a reviravolta completa da percepção de Vassíli Grossman ainda
não tinha acontecido) mas pode ler-se isoladamente sem quaisquer problemas. A
sua acção inicia-se em Outubro de 1942 e estender-se-á por vários meses,
seguindo a contra-ofensiva soviética iniciada em Stalinegrado até à chegada do
Exército Vermelho à Ucrânia, nos princípios de 1943.
Se o centro do romance é a batalha de Stalinegrado, porque é ela que dita a «marcha dos acontecimentos», o seu tempo e memória são muito mais vastos e os seus personagens espalham-se por toda a Rússia, têm actividades e visões da vida muito diferentes. Esta composição caleidoscópica, à maneira de Tolstói, aliás várias vezes citado pela boca da personagem Strum, principalmente, confere ao livro um carácter global e exaustivo, quer em termos históricos, quer em termos psicológicos, a todos os níveis de leitura.
Se o centro do romance é a batalha de Stalinegrado, porque é ela que dita a «marcha dos acontecimentos», o seu tempo e memória são muito mais vastos e os seus personagens espalham-se por toda a Rússia, têm actividades e visões da vida muito diferentes. Esta composição caleidoscópica, à maneira de Tolstói, aliás várias vezes citado pela boca da personagem Strum, principalmente, confere ao livro um carácter global e exaustivo, quer em termos históricos, quer em termos psicológicos, a todos os níveis de leitura.
O olhar do autor sobre as personagens é profundamente
humanista e variado, e nunca sectário. Aqui, os homens são partículas no seio
dos sistemas sociais de massas, e mostra-se a tendência dos indivíduos em
aceitarem o sistema no caso de ocuparem nele o seu lugar. Mas também a
importância de as pessoas terem capacidade de resistir, de manter a sua
dignidade humana, a sua liberdade interior. O físico Strum cai em desgraça
perante os chefes administrativos, os burocratas da nomenklatura e do partido e os próprios colegas do instituto
tolhidos pelo medo ambiente e institucional, e resiste, pronto a perder tudo
--- trabalho, vida confortável, liberdade. Um telefonema pessoal de Stálin
levanta-o da lama até às alturas de uma pessoa privilegiada, de intocável a
brâmane --- e o recente lutador torna-se submisso. A arma do poder totalitário
não é apenas a violência que leva ao extermínio físico de seres humanos, mas
antes de mais os métodos de transformar pessoas em «parafusos» da máquina
estatal, conformistas e participantes obedientes do regime.
A forma literária de Vassíli Grossman é muito forte, o
realismo do seu estilo não está contaminado pela propaganda nem pela visão
optimista oficial da nova vida, é antes um realismo clássico, onde é imitada a
estrutura global de Tolstói em Guerra e
Paz, onde abundam os debates filosóficos como em Demónios ou Irmãos Karamázov
de Dostoiévski. É interessante a análise de Tzevetan Todorov à obra de Grossman
e particularmente a Vida e Destino: o
autor de quem Grossman se sentiria mais próximo, «pela sua própria confissão, é
Tchékhov, porque é ele que traz à literatura russa o novo humanismo centrado
nas ideias de liberdade e de bondade». Uma coisa é certa, o realismo de Vassíli
Grossman é um realismo implacável. Os «novos tempos», tal como esfolaram a
revolução para lhe aproveitarem a pele, são esfolados e escalpelizados pela
pena corajosa e lúcida do autor. A União Soviética é vista pelas personagens como um
verdadeiro monstro burocrático com regras tão arbitrárias e flutuantes que, de
um momento para o outro, podem recompensar ou castigar o cidadão, com o único
objectivo, ao que parece, de criar na população em geral um sentimento difuso
de medo e angústia. A este sentimento aliam-se, indissociavelmente, as
instituições de segurança e repressão, os campos correccionais, os processos
pré-formatados (praticamente sem direito à defesa por parte do acusado), a
denúncia institucionalizada que daí advém. Até em plena guerra, onde todos
estavam do mesmo lado, até em plena batalha de Stalinegrado, o medo de falar e
agir e a denúncia e a purga permanentes são moeda corrente a que ninguém
escapa, nem os próprios denunciantes. Este medo culmina na pessoa de Stálin,
«escravo do tempo e das circunstâncias, resignado e obediente servo do dia de
hoje». No romance de Vassíli Grossman é também muito bem contado o fenómeno
psicológico da assunção da culpa por quem não é claramente culpado de nada.
Krímov, personagem chave de Vida e
Destino, um homem férreo e sem dúvidas, foi parar, como tantos militantes
destacados do partido, às masmorras da Lubianka. Sabe-se inocente mas, na
evolução dos interrogatórios, começa a questionar a sua «inocência». E nem o
amor o salva da culpa mística com que o partido impregna toda a gente. «Depois
dos interrogatórios, Krímov ficava deitado no catre, gemia, pensava, conversava
com Katzenelbogen. Agora já não pareciam inverosímeis a Krímov as loucas
confissões de Bukhárin e de Ríkov, de Kámenev e de Zinóviev, o processo dos
trotskistas, dos centros direitistas e esquerdistas […]»
Nem só da II Guerra Mundial trata o livro. Através da formidável galeria
de personagens de Vida e Destino,
Vassíli Grossman leva-nos a descobrir os julgamentos dos soviéticos da sua
época sobre a história do país após o advento dos bolcheviques, numa visão de
conjunto multifacetada e bem informada: Vassíli Grossman questiona a utilização violenta e maciça por parte dos
sovietes, em 1917, da sua vitória na revolução para assumirem um poder absoluto
sobre as instituições russas, em detrimento da formação de uma Assembleia
Constituinte para a Rússia; com as evocações frequentes sobre o esbulho e a
eliminação dos kulaks nos anos vinte
questiona a política agrária; com as purgas maciças de finais dos anos trinta
condena abertamente o sistema securitário. A vitória absoluta e total do regime
surge em Vida e Destino como a
vitória do absurdo e do arbitrário sobre o humanismo do ideal comunista. Como
já se viu, as críticas formuladas através do livro ao sistema social assim
criado e desenvolvido incidem muito sobre a viragem do regime soviético do
internacionalismo para o nacionalismo, que terá consequências muito concretas:
o ostracismo institucionalizado de certos sectores da sociedade passará ao
longo dos anos a um racismo institucionalizado incidindo sobre etnias e
religiões consideradas nocivas. E é este factor que, aos olhos de Grossman,
marcará a proximidade dos regimes hitleriano e stalinista, em tudo o que eles
têm de implacável nas suas pretensões ao bem absoluto para os seus abstractos
homens «eleitos»: alemães puros de um lado, operários puros do outro. Mais uma
vez, é a personagem mais pessoal do seu romance, Strum, quem debate estes
pontos de vista.
Para terminar, apontemos a visão
filosófica expressa no livro e personificada nas ideias humanistas e
aparentemente ingénuas de um tal Ikônnikov, eremita místico depois executado
pelos alemães e um dos prisioneiros russos juntamente com o bolchevique
Mostovskói. Em certo sentido, esta visão
do mundo corresponde a um ponto de contacto entre as filosofias ocidental e oriental;
rejeita violentamente a possibilidade de um grande bem social universal assim
como as pretensões dos sistemas sociais de massas, valorizando a dualidade da
condição humana, que vê sistematicamente surgir o bem do mal e o mal do bem.
No fundo, porém, só a leitura integral deste livro nos mostrará o
escritor e o homem, Vassíli Grossman, capaz de pôr em questão a totalidade do
seu sistema de pensamento assim como as doxas do seu tempo, tornando-se assim
um dos testemunhos mais lúcidos e corajosos da história profunda (aquela que
não nos pode ser transmitida pelos livros de história) do século XX.
4 comentários:
Este blogue teve um destino que foi ainda mais longe. Entregue ao autor deste blogue, teve o privilégio não só de não ser actualizado durante quatro meses, como de desaparecer da face da Terra durante 16 semanas. Conhecem-se outros casos semelhantes, mas poucos regressos nos dariam tanta satisfação, pese embora as letras negras em fundo cinza serem de facto de molde a fazer perder a paciência aos leitores mais empenhados. Welcome back.
Li o Vida e Destino (na boa tradução de Marta Rebón para espanhol, que me ofereceram) e surpreendeu-me: fez-me passar horas de leitura intensa, aprender mais alguma coisa, viver um pouco menos estúpida.
E já agora, GAF, viva, pelo regresso.
Morgada de V., as letras negras em fundo cinza não são da minha responsabilidade mas sim dos escaninhos misteriosos do editing ou lá que é isso da merda do blogue.
Sun, é um livro muito forte, é verdade
GAF
Alguém sabe quem o traduziu? Obrigado.
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