Em Infância (escassas cem páginas), de Lev Tolstói, Natália Sávichna abriu um baú azul claro, há uma casaca azul, uma camisola azul celeste, três rapazes de calças azuis, muitos olhos azuis, maravilhosos, calças azuis com presilhas, casaco azul com gola de zibelina, olheiras azuladas do adolescente, céu azul (pois claro), cavalo azulado de focinho adunco, floresta alta e azul, centáureas azuis (evidentemente). Já em Almas Mortas, Gógol, como quem não quer a coisa, põe o criado Petruchka a desembrulhar um frango do papel azul (azul entre vírgulas), mas parece que isso era influência do velho conto tradicional russo em que o papel de embrulho do frango é azul. Mas diz-me quem sabe que, na Rússia, o papel de embrulho sempre foi azul. Digamos também que, na Rússia, há neve de várias cores, mas a neve mais pintada é a azul. Os grandes escritores russos do século XIX não inventavam nada e, se o azul existe e é até uma cor bastante boa, vá de pintá-lo, sem explicações, sem teorias, sem buscas, sem silêncios palavrosos. Ah, o silêncio azul! Voltando à Infância, depois da caçada, a criança de 10 anos vai desenhar com as outras.
“Já caía a noite quando regressámos a casa. A maman sentou-se ao piano, e nós, crianças, fomos buscar papel, lápis, tintas e instalámo-nos à volta da mesa redonda. Eu tinha apenas tinta azul; apesar disso, resolvi pintar a caçada. Desenhando rapidamente um rapaz azul num cavalo azul e cães azuis, tive dúvidas se se podia desenhar uma lebre azul e corri ao gabinete do meu pai para lhe pedir conselho. O papá estava a ler qualquer coisa e, à minha pergunta: «será que existem lebres azuis?» — respondeu sem levantar a cabeça: «existem, meu amigo, existem». Voltei para a mesa redonda, desenhei uma lebre azul, depois achei necessário transformar a lebre azul num arbusto. Não gostei também do arbusto: fiz dele uma árvore, da árvore fiz uma meda, da meda uma nuvem e, por fim, sujei todo o papel de tinta azul de tal modo que, irritado, o rasguei e fui dormitar numa poltrona Voltaire.” (Infância, de Lev Tolstói).
1 comentário:
Que delícia (e que bela tradução). Vou ter de ler esse Azul.
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